Forças do Estado
Estreio, com este artigo, como colunista da Carta Capital, o que muito me honra. Agradeço à revista, em nome do jornalista Mino Carta, o convite. Espero contribuir para reflexões importantes em tempos tão desafiadores.
E este primeiro texto é sobre um assunto que vem motivando muitas análises. Desde o início de 2019, a grande presença de militares no governo federal tem suscitado discussões, especialmente a partir da postura autoritária do atual presidente. Nos últimos dias, porém, ganhou novos elementos. A linha tênue com que ele flerta com o rompimento institucional para incendiar um time de fanáticos, alimenta sempre dúvidas sobre o futuro. A recente demissão do ministro da Defesa, seguida de inédita troca dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, por não compactuarem com a sanha golpista do Planalto, diz muita coisa. Reforça o caráter de Estado que caracteriza esta instituição.
Estudei no Colégio Militar do Rio de Janeiro e tive a honra de ser ministro da Defesa no governo da presidenta Dilma Rousseff – experiências que me fizeram conhecer a boa formação e o compromisso de homens e mulheres que integram as Forças Armadas com a soberania e a independência nacional. É natural que o clima permanente de instabilidade do atual governo provoque muitas dúvidas sobre o engajamento dos militares. Por isso, tenho repetido, e os episódios recentes fortalecem, minha crença de que a orientação maior é com os princípios constitucionais.
Lembremos que estes profissionais são preparados para uma estratégia de defesa, ou seja, para nos proteger de guerras ou ataques externos. Hoje, vivemos uma situação limite, contra um inimigo invisível e altamente letal. Caberia, portanto, ao comandante supremo das Forças Armadas, que é o presidente, uma orientação para esta guerra, que é a única que nos interessa. Em vez disso, ele nomeia e mantém à frente do Ministério da Saúde, por mais de nove meses, um general sem qualquer experiência em saúde pública, justamente na maior crise sanitária do país, somente para referendar seu negacionismo.
Lembremos o quão constrangedor foi o episódio que ficou conhecido como “um manda e o outro obedece”, quando o então ministro foi desautorizado a seguir tratando da compra de vacinas. Justamente as vacinas que tanta falta nos fazem agora e que são a única arma que temos para vencer o coronavírus. É a falta de vacinas que causa tantas mortes. Assim como é a falta dessas vacinas que mantém negócios fechados e paralisa a economia. Tudo por conta de uma visão lunática de quem prefere negar a realidade e receitar remédios sem eficácia, enquanto pessoas morrem nos hospitais por falta de oxigênio. E o pior, constrangendo militares a cumprirem essa lamentável missão.
Da mesma forma, o triste espetáculo que foi a cena dantesca de dois ministros de Estado, um general do Exército e um almirante da Marinha, atravessando a Praça dos Três Poderes para entregar ao Congresso um projeto que autoriza a venda de uma das mais importantes empresas nacionais, a Eletrobras. Causa espanto que sejam justamente os militares, que implementaram um Plano Nacional de Desenvolvimento quando governaram o país, focado na industrialização do Brasil e que criou 47 empresas públicas, a cumprir hoje esse papel. Afinal, foi nesta época que Embraer, Correios, Embrapa, Telebras e Infraero foram inauguradas e a própria Eletrobras se consolidou. Também foi um período de importantes obras de infraestrutura como a Itaipu Binacional, as usinas nucleares de Angra e a Ponte Rio-Niterói. Não quero aqui relativizar o rompimento democrático e as graves violações de direitos humanos, contra os quais lutei na juventude e condeno até hoje, mas resgatar o espírito de desenvolvimento nacional daquele momento histórico.
Faço essa reflexão para reafirmar que o compromisso com o nacionalismo, com o fortalecimento do Estado e com a ordem democrática não são escolhas de governantes de plantão. Muito menos quando se trata do governo liderado por um mau militar, que foi para a reserva justamente pelo seu péssimo comportamento nos quartéis. As Forças Armadas não se movem a partir da simpatia ou da antipatia por governantes democraticamente eleitos. Não foi assim nos governos do Partido dos Trabalhadores e não deve ser assim no atual.
Estou entre os que acreditam que os valores democráticos prevalecerão diante do desmonte e da vergonhosa submissão promovida por esta gestão num momento tão dolorido da nossa história. Defendo que desarmemos os espíritos e sigamos todos com o mesmo foco, que é salvar vidas. Depois, partiremos para a necessária reconstrução do país. Tenho certeza que, assim, contaremos com o apoio patriótico de todos, inclusive destes servidores do Estado brasileiro.
Jaques Wagner
Senador da República (PT-BA)
Artigo publicado pela revista Carta Capital, em 02/04/2021.